Livro | Estação Carandiru (Drauzio Varella)

Imagem (editada) que estampa a capa do filme Carandiru (2003)

Neste livro, que deu origem ao filme Carandiru de 2003, Drauzio narra sobre sua experiência como médico no Complexo Penitenciário do Carandiru durante a década de 1990. Não é um livro apenas para médicos, pelo contrário, Drauzio utiliza pouco da linguagem médica, e as histórias interessam mais do que as patologias. É bom ler algo do tipo, escrito por um médico, profissão muitas vezes tida como insensível.

Com mais de vinte anos de clínica, foi no meio daqueles que a sociedade considera como escória que percebi com mais clareza o impacto da presença do médico no imaginário humano, um dos mistérios da minha profissão.

O mais bacana sobre a escrita do autor é que ele se coloca com sinceridade, confessando seus medos, preconceitos e receios em estar ocupando aquele espaço. É inicialmente como um observador externo que Dr. Drauzio apresenta a estrutura do presídio e as dinâmicas de cada pavilhão; E é aos poucos ganhando a confiança e respeito dos detentos que ele nos mostra "código penal não escrito", as regras surgidas das necessidades de convivência entre os detentos e extremamente necessárias para que o presídio continue funcionando. Ainda conta as histórias de algumas figuras marcantes, explicando como entraram na criminalidade, como chegaram até o Carandiru e de que forma aprenderam a viver naquele espaço. Essas histórias destacam o quanto a vida no crime não é uma vida fácil, e como muitas vezes essas pessoas entram na criminalidade por falta de oportunidades ou perspectivas de vida. O livro culmina com o fatídico e chocante massacre do Carandiru contado a partir da visão dos detentos sobreviventes.

Aquele mundo havia entranhado em mim, era tarde para fugir dele. Como médico, não me cabia julgar os crimes dos pacientes, a sociedade tinha juízes preparados para essa função. 

Como no caso qualquer paciente, para fazer um bom diagnóstico e tratamento, é importante obter uma boa história, e isso só se faz com o estabelecimento de vínculo e confiança. Para trabalhar como médico num presídio Drauzio se apropriou da ginga da malandragem, trabalhou com os recursos dos quais dispunha, tentou estabelecer uma forma de comunicação e educação em saúde condizente com as circunstâncias em pleno período de ascensão da epidemia de AIDS, com o uso disseminado de drogas injetáveis, fora outras doenças, em geral infecciosas que encontravam ótimas condições de disseminação, nas palavras de Dráuzio, "naquele lugar mal ventilado, o único que não podia de queixar das condições de vida era o bacilo de Koch"¹. 

A realidade é desconcertante numa prisão, o que parece certo muitas vezes está errado, e aparentes absurdos encontram lógica em função das circunstâncias.

Drauzio nos mostra um mundo que segue a regras completamente diferentes das nossas, que tem uma dinâmica muito própria, e que cada um estabelece as próprias estratégias de sobrevivência. O livro tem uma linguagem bastante fluida, e sobretudo é uma denúncia do descaso e da decadência do sistema carcerário brasileiro. Ele conta a história lá dos anos1990, mas de lá para cá a realidade não mudou muita coisa.
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1 - O bacilo de Koch é o agente infeccioso da tuberculose.

Nota: Devo dizer que me causou incômodo o autor trazer "os travestis" no masculino, quando sabemos que travesti é uma identidade feminina. Apesar dessa ressalva, reconheço que quando da publicação da primeira edição do livro não era tão disseminada essa consciência de gênero acerca da figura da travesti. Além do que autor traz bastante a questão de gênero no livro, abordando a relação entre "as mulheres de cadeia", que são as travestis, e o poder feminino que elas exercem lá dentro. A travestis são vedadas a muitas atividades e ações justamente por conta dessa imagem feminina, afinal existe machismo dentro do código de conduta da malandragem. E já que comecei a falar das questões de gênero, o autor disserta também sobre o respeito às mulheres dos detentos e às visitas íntimas, bem como o ódio aos estupradores, e a justificativa para tal.

Nota 2: Estou sem celular, então as postagens por enquanto serão sem fotos mesmo, beleza?

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