Livro | Holocausto Brasileiro (Daniela Arbex)

Forte. Pesado.

Hospital Colônia de Barbacena. Foto de Luiz Alfredo.

A certeza que eu tenho na vida é que eu choraria lendo a lista de compras de Daniela Arbex. Assim como em “Todo dia a mesma noite”, ela faz um trabalho impecável, elevando a narrativa para um outro patamar. Logo no prefácio levei vários tapas na cara. É brutal. 

Daniela é uma relevante jornalista brasileira dedicada à defesa dos direitos humanos. O seu livro "Holocausto Brasileiro" foi eleito Melhor Livro-Reportagem do Ano pela Associação Paulista de Críticos de Arte (2013) e segundo melhor Livro-Reportagem no Prêmio Jabuti (2014).
“O fato é que a história do Colônia é a nossa história. Ela representa a vergonha da omissão coletiva que faz mais e mais vítimas no Brasil. Os campos de concentração vão além de Barbacena.” 
Quando ouvimos falar em holocausto a primeira imagem que vem à mente é a dos judeus e outras minorias que sofreram nos campos de concentração nazistas. Esse fato corresponde a um marco extremamente cruel da história da humanidade. Será que podemos mesmo chamar de Holocausto o que ocorreu em no Hospital Colônia de Barbacena?

Sim.

Sem dúvidas.

Não foi um exagero da autora, e à medida em que as inúmeras violações dos direitos humanos são narradas no livro fica muito claro que esse capítulo da nossa história é uma catástrofe equivalente ao título de holocausto. E fica claro também o quanto é importante o registro de Daniela faz.

O edifício hospitalar foi construído sobre o terreno da antiga fazenda da Caveira, que pertenceu a Joaquim Silvério dos Reis (SIM! O TRAIDOR DOS INCONFIDENTES!), sendo fundado em 1903. O Colônia logo se tornou centro de referência de psiquiatria, sendo procurado pelas famílias que buscavam tratamento para os “desajustados”, epilépticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder.



Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, filhas de fazendeiros as quais perderam a virgindade antes do casamento. Homens e Mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos 33 eram crianças. Ao ver que não havia critérios para a internação, bastando que se tratasse de uma pessoa "diferente" da expectativa da sociedade, remonta aos ideais de eugenia e limpeza social, e também me fez lembrar do "Alienista" de Machado de Assis, só que dessa vez a narrativa era real, e nada tinha de divertido.
“A estimativa é que 70% dos atendidos não sofressem de doença mental, apenas eram diferentes ou ameaçavam a ordem pública (...) livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela, de preferência em local que a vista não pudesse alcançar.”
As fotografias que ilustram o livro trazem um ar documental à obra. Materializam as imagens hediondas que imaginamos quando estamos lendo. E trazem para a realidade os relatos do passado e do presente, ao passo em que vemos também alguns relatos emocionantes de reinserção social, principalmente através das residências terapêuticas, cuja existência se deve à Reforma Psiquiátrica. É lindo, e me trouxe lágrimas aos olhos ler sobre pessoas resgatando sua dignidade e sua individualidade, após serem levadas às residencias e poder assumir a liberdade que o Colônia usurpou.

Quase feliz, afinal ainda existem as marcas do passado e os desafios do presente.

A questão temporal fechou o combo da minha fúria. A última cela do antigo hospital Colônia foi desativada em 1994. Em 2011, APÓS DOZE ANOS DE TRAMITAÇÃO, foi aprovada a Lei Federal 10.216, que “Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Assim sendo, esse livro é um mais um símbolo da luta antimanicomial ao desnudar essa memória perversa que corresponde ao que há de mais desumano na cultura dos manicômios.

"Como resgatar o sofrimento imposto por uma vida inteira? É difícil devolver a eles o que lhes foi negado."

É importante lembrar do passado que não queremos repetir. E mais importante ainda: essa mentalidade manicomial é o maior desafio da Reforma Psiquiátrica atualmente. Nos últimos capítulos vemos as tramitações políticas que possibilitaram o fechamento de diversos manicômios Brasil afora. E agora o desafio é fazer com que os portões da loucura continuem abertos. Fiquemos atentos, portanto, aos novos formatos que reproduzem antigas prisões.

Forte. Pesado. NECESSÁRIO.

Por fim, fica a nossa recomendação do documentário dirigido por Daniela Arbex e Armando Mendz, disponível gratuitamente no youtube.


Esta é uma resenha colaborativa (a primeira do blog), escrita em parceria com a minha gêmea Ana Luíza.

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