vinte e quatro horas que valeram por pelo menos quarenta e oito


Ando meio monotemática, eu sei. Mas a vida anda meio monotemática mesmo. Tenho vivido para trabalhar e descansar e trabalhar e descansar. E as vezes nem descanso direito, mas estou a ponto de mudar isso.

Hoje vim falar do primeiro plantão do ano, para que eu não me esqueça que se eu consegui suportar aquele dia, eu sou capaz de qualquer coisa.

Primeiro de janeiro já é um dia historicamente conturbado nas emergências por aí. Porque o pessoal de férias e em comemoração acaba se envolvendo em acidentes e coisa e tal. Para além disso ainda estamos vivendo um surto de influenza que está lotando os pronto socorros de tudo quando é canto com gente com síndrome gripal. Muita gente com sintomas leves, mas também uma quantidade razoável de gente com sintomas mais preocupantes - principalmente idosos com falta de ar.

Justamente por causa dessa maldita gripe a emergências tem contado com um médico extra para dar assistência às pessoas gripadas pelo menos durante metade do plantão. Nesse primeiro dia do ano a diretoria do hospital não conseguiu outro médico, então eu fiquei sozinha. Além disso era um sábado, e no final de semana a diretora médica não passa enfermaria... a gente recebe um pouco mais pra poder fazer esse trabalho.

Olha, até pensei em ser mais poética, mas acho que precisamos de pelo menos um pouco de contexto. Para completar o quadro era meu primeiro plantão na cidade em que eu moro. Cidade pequena, aí já viu, né? Todo mundo me conhece ou conhece minha mãe, e se eu naturalmente já tenho a preocupação em trabalhar bem, aqui tenho o dobro da preocupação pelo medo da fofoca.


Tive uma demanda imensa na porta e precisei dividir meu tempo de forma inteligente para que a enfermaria fosse prescrita antes de meio dia. Óbvio que não fui inteligente e atrasei tudo. Fiquei nervosa, ansiosa em vários momentos. Chegaram pacientes graves, idosos com falta de ar, vítimas de acidentes, pessoas com influência política - uma pressão a mais na minha mente... e tudo ao mesmo tempo em um mar de fichas azuis. Fui atravessada por diversas dores, em especial a dor de uma mãe cantando a dor de seu filho em um luto sensível e forte. O primeiro óbito.

E como se não fosse o bastante, um acompanhante insatisfeito entrou no hospital armado ameaçando o pessoal da recepção. Só ouvi os gritos de "ele está armado", "corre!", "cadê a doutora?", enquanto eu junto com a técnica de enfermagem nos escondíamos no banheiro. Depois de toda a pressão do dia aquele foi o momento que não deu mais. Sentei no chão do banheiro, bem dramática, e comecei a chorar, deixei vazar as lágrimas que estive prendendo durante todo o dia. No meio do atentado terrorista uma mulher entrou em período expulsivo de trabalho de parto, tive que ir atender ela correndo. A gente não tem sossego.

Depois de todo o caos ainda precisei me colocar de pé - descobri que a arma do rapaz era um canivete - e terminar os atendimentos do dia. Eu e a equipe achamos que merecíamos uma pizza, que pedimos por volta de 22h, mas só chegou às 2h da manhã. A gente não tem um segundo de paz. 


Foram diversos os momentos em que eu achei que não iria conseguir. Em que achei que iria surtar e precisar que alguém viesse me socorrer. Mas olhava o relógio, via quantas horas faltavam para o plantão acabar, segurava na mão da equipe, e seguia. 

Acabou.

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