Diário de interna | Véspera de véspera de natal

Ressuscitei o blog por incentivo de uma amiga. E inventei essa série nova também por incentivo dessa mesma amiga. Tem uma pitada de saúde mental aqui no meio, mas talvez eu explique isso outra hora. Ri sozinha agora, porque essa minha amiga me disse para parar de prometer textos que nunca vou escrever.

Já contei para vocês que eu sou estudante de medicina, e que estou na reta final do curso: o internato. Hoje comecei o meu rodízio de cirurgia.

Tivemos práticas no hospital antes, mas eu nunca me senti à vontade nesse ambiente. Me sentia pequena diante das cobranças, que nem eram tão grandes assim. E às vezes ainda me sinto dessa forma.

Mas vamos lá: Primeiro dia. Véspera de véspera de natal.

Chegamos em grupo: eu e mais três colegas. Com nossas roupinhas privativas cor de vinho. Apesar de conhecermos o labirinto dos corredores do hospital, foi inevitável nos perdermos. Acabamos descobrindo que não havia necessidade de estar usando as roupas privativas, já que não estaríamos no centro cirúrgico hoje. Tarde demais, já estávamos todos fardados e passando calor.

Fui andando rindo simpática. Rindo de nervoso, a quem quero enganar?

Chegamos na emergência, nosso posto por sorteio, e não sabíamos o que fazer. Felizmente fomos muito bem recepcionados por nossos veteranos. A gente nem se conhece tão bem, ou nem costuma se falar, mas eles entendem como a gente se sente. Afinal eles também já estiveram perdidos em seu primeiro dia.

Me senti acolhida.

Fomos então conhecer a enfermaria. Reencontramos amigos, nos metemos em atividades que não nos foram designadas. Corremos atrás, não é assim que tem que ser? E que bom que fizemos isso. Nos apresentamos diante de uma equipe empolgada, que nos recebeu muito bem.

Me senti acolhida.

- Olha, nem sempre a gente consegue fazer o melhor possível, mas nunca deixem de fazer tudo o que podem. Boa parte do trabalho aqui é burocrático, e às vezes esquecemos que o importante é cuidar do paciente. - Assim ficou gravada na memória a frase de um dos técnicos.

Mal cheguei e já me senti afetada por cicatrizes, vômitos e sangue. Enxerguei tudo isso antes mesmo de enxergar as pessoas.
Já me senti impotente, frustrada e empolgada.

Ainda com o riso nervoso na cara.
Me enchi de conflitos.
Fui desafiada.

Perambulamos por diversos espaços. Fiz um mapa dos refúgios e esconderijos, lugares que também são espaço de cuidado.

Me senti acolhida. 
Dessa vez pelo ambiente em si.

Dado momento na emergência me vi de frente à uma mãe com seu filho, que tinha caído de bicicleta e precisava de uma sutura. A mãe percebeu minha tremedeira de iniciante. E à sua maneira não se preocupou se iria me machucar, ela só queria o melhor para seu filho. Entendo. E o  apoio veio de onde eu não esperava:

- Ela vai fazer a sutura? Ela tá tremendo. Cadê o cirurgião? - dava pra ouvir o desespero na voz.
- Ela estudou e está capacitada pra isso - disse um técnico que tinha acabado de me conhecer.

No fim o apoio não foi o bastante para suplantar a insegurança, o deboche, o julgamento, a expectativa, o nervosismo. Não consegui fazer o procedimento. Saí da sala atrás do refúgio que mapeei. E mais uma vez encontrei apoio onde não esperava.

- A primeira vez é assim mesmo. Com o tempo e com experiência você transparece confiança para o paciente. Tem que treinar, treinar, treinar. 
- Isso não define se você é boa médica ou não, todo mundo fica nervoso no primeiro dia.

O que me preocupa é um fato tão corriqueiro me afetar tanto tanto assim. O  que me preocupa é saber que tudo isso que me disseram é verdade, é compreender os conselhos, as observações, as críticas, mas ainda assim não controlar a minha reação. Às vezes eu queria não ser tão sensível. Seria mais fácil.

O hospital é frio. Mas também é quente. Com pessoas vibrantes e acolhedoras.

O hospital é frio e frustrante. Mas chamo a frustração de desafio e daí tento superar.



Voltando à realidade, mas nem tanto, saio do hospital entre 17h e 18h, me despeço de meus amigos e me sento num banco para esperar minha carona. Passa por mim um homem fazendo muxoxo, com uma sacola  plástica na mão, sua bagagem de mão para ser acompanhante de alguém em plena véspera de véspera de natal. Imagino uma história por trás do muxoxo, da sacola e do feriado. Ele está chateado porque não vai passar o natal como gostaria, calhou de ser ele o responsável naquele dia, tomara que seu pai não morra no natal, como é chato dormir na enfermaria sem conforto.

Vejo no pátio, no estacionamento, um menino empinando uma pipa. Observo melhor, são várias pipas. E o crepúsculo se anunciando. Fico submersa no momento, na paisagem. De onde surgiu esse menino com essa pipa? Não importa. Tá tudo bem.

O telefone toca: minha carona chegou. Chega de hospital. Por hoje.

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